segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Roger Steffens, o maior colecionador de reggae do mundo















Em 1979, o jornalista, ator, escritor, palestrante e arquivista Roger Steffens resolveu se dedicar a sua maior paixão - entre todas essas -, a música da Jamaica. Criou o programa Reggae Beat, na rádio púlbica KCRW, que rompeu as fronteiras de Los Angeles, e conseguiu ser retransmitido para 130 estações ao redor do mundo. Números tão expressivos chamaram atenção da Island Records que, à época, tinha no portifólio artistas como Steel Pulse, Traffic, Third World e o carro-chefe, Bob Marley, que preparava uma turnê norte-americana de seu álbum mais explosivo, Survival.
"A Island Records nos ligou e perguntou se gostaríamos de cair na estrada com Bob Marley por duas semanas. Nós topamos na hora", conta Roger em uma entrevista por e-mail com o ObaOba, concedida em meio a sua atribulada agenda de apresentações do show "The life of Bob Marley", uma apresentação multimídia que nasceu de uma palestra no Instituto Americano de Cinema e virou sua principal atividade profissional. Hoje, além de principal entendido de reggae no mundo, Roger é dono do maior acervo acerca do assunto e não para de descobrir coisas novas. Entre suas últimas descobertas estão algumas faixas inéditas de Bob Marley, provavelmente preparadas para o próximo disco que ele lançaria, se não tivesse morrido. No meio dessas faixas, há inclusive uma bossa-nova, composta provavelmente durante a viagem de Marley ao Brasil em março de 1980. Mas não há ninguém melhor do que o próprio Roger Steffens para falar sobre isso.¹

O que é a apresentação multimídia "A vida de Bob Marley"?
Eu comecei a apresentar "A vida de Bob Marley" em 1984, incialmente a pedido do American Film Institute (Instituto Americano do Cinema) em Hollywood que, naquele ano, promovia o Festival Nacional do Vídeo. Eu apresentei umas duas horas de imagens inéditas e falei sobre a vida de Bob entre os clipes. O programa foi muito bem recebido e eu comecei a ser convidado para apresentá-lo em faculdades e, eventualmente, em casas noturnas e teatros. Desde 1973, eu coleciono tudo o que encontro sobre Marley, reggae e Rasta, bem como artigos relacionados a história e cultura jamaicanas - livros, revistas, gravações, vídeos, filmes, obras de arte etc. Até hoje, aprendo coisas novas sobre Marley, encontro novos filmes e áudios de sua notável carreira. Assim, o show é sempre diferente e constantemente atualizado para refletir novos conhecimentos e descobertas. Normalmente, dura um pouco mais de duas horas e eu falo no palco entre filmes inéditos, com uma exibição de fotos não-publicadas de Bob atrás de mim. É uma imersão total no universo de Marley e foi apresentada no fundo do Grand Canyon, para aborígenes na Austrália, para entusiastas Maori na Nova Zelândia; do Instituto Smithsoniano (complexo de museus em Washington) e o Experience Music Project (museu de música popular em Seattle) ao Hall da Fama do Rock and Roll, onde eu fui o primeiro orador e sou o mais frequente (nove vezes). Neste mês de maio, eu devo apresentá-lo no novo museu do Grammy em Los Angeles.
Conte sobre a primeira vez que você encontrou Bob Marley.
Conheci Bob em 1978, no camarim de um show em Santa Cruz, Califórnia. Ele estava "nas alturas" e eu não tive a chance de conversar com ele. Não queria incomodá-lo. Naquele dia, ele e sua banda assinaram um pôster de um par de shows que fariam em Berkeley, Califórnia. Eu vivia na área e comprei tíquetes para as duas apresentações. No ano seguinte, eu e meu parceiro de rádio, Hank Holmes, criamos o programa "Reggae Beat" na estação pública de Los Angeles, KCRW. A Island Records nos ligou e perguntou se gostaríamos de cair na estrada com Bob Marley por duas semanas. Nós topamos na hora e conseguimos passar um bom tempo com ele - no ônibus para os shows, nas passagens de som e no hotel em que ele estava hospedado, onde conseguimos promover duas noites de exibição dos filmes inéditos Smile Jamaica (show que Bob fez na Jamaica, um dia depois de ser baleado em sua casa, em Kingston) e One Love Peace Concert (festival em 78, também na Jamaica, em que Bob juntou as mãos dos dois principais políticos da ilha, encerrando uma onda de violência).

Por que Bob Marley se tornou o artista mais influente do Terceiro Mundo?

Bob se tornou o artista mais influente do Terceiro Mundo porque sua música tinha uma causa. Ele tinha a habilidade de dizer poeticamente, em poucas palavras, o que a maioria das pessoas só consegue desenvolver em muitos parágrafos. Ele conseguia sintetizar os horrores do shitstem (trocadilho frequente na Jamaica que mescla system - sistema - e shit - merda) capitalista em uma estrofe, quando cantava "Meu Deus, analfabetismo é simplesmente uma máquina de fazer dinheiro" (trecho de "Slave Driver", do álbum Catch a fire). Ele era uma figura moral que transcendia o mero estrelato pop e tocava a divindade inerente a cada um de nós, conclamando uma elevação coletiva. Ele próprio, não ligava para dinheiro - era só uma ferramenta para ajudar as pessoas. Sozinho, ele sustentava 6 mil pessoas por mês! Suas inspirações viverão para sempre.
Apesar de a maioria de suas músicas - especialmente durante o período da Island Records - falarem de revoluções espirituais e mesmo políticas, muitos fãs veem Bob Marley como um homem de paz incondicional, quase um hippie. Mas ele próprio era muito distante da ideologia hippie. Por que este estereótipo sobrevive? 
Hippies amam a maconha, a maioria deles usava - assim como Bob. Hippies eram anti-autoritarismo - Bob dizia que "todo governo na face da Terra é ilegal. Só a lei de Jah (Deus) é legal". "Eu sou um rebelde", Bob sempre dizia - os hippies também. Uma vez perguntaram a Bob, em Cleveland, 1979, como ele se sentiria se ele retornasse no ano seguinte e encontrasse o público repleto de "jovens brancos com dreadlocks". "Ótimo!", ele respondeu.

Em 1979, Bob tentou impactar a América negra com sua turnê Survival. Por que ele era tão obcecado pelos negros americanos e por que ele nunca conseguiu atingir tantos quanto ele pretendia? 

Apesar de ele ser filho de um branco Jamaicano, Bob se identificava com a raça negra. Era frustrante para ele que, nos anos 70, os negros americanos fossem tão antagônicos a tudo que os lembrava de suas raízes africanas - a maioria deles encarava a África como um continente atrasado e ingovernável. A música mais popular entre o público negro daquela época era um disco "cocainado", cujas letras não traziam nada para educar ou incitar a revolução. Para eles, os anos 60 (quando aconteceram os movimentos de afirmação negra e a luta pelos direitos civis) eram uma aberração, uma memória distante que a maioria preferia esquecer.
Você descobriu diversas faixas inéditas gravadas por Bob entre 1979 e 1980. Entre elas, a bossa "Pray for me". No fórum da Bob Marley Magazine, há uma longa discussão sobre os rumos que Bob trilharia nos anos 80. O que você acha que ele estava preparando para o futuro?
"Nossa missão", ele disse a Desi Smith e à namorada Yvet Crichton, "é construir um estúdio na África, fazer hit atrás de hit, e virar número um lá. Depois, é só dar risada!". Definitivamente, o futuro dele era na África, para onde ele ansiava tanto por retornar. Mas ele ficou terrivelmente aborrecido pelo que ele viu em sua única visita à Etiópia, em 1978. Então, não há como dizer em que lugar da África ele teria ido parar. Há um excelente livro de "história alternativa" sobre o que poderia ter acontecido se Bob tivesse sobrevivido. É "Joseph: A rasta reggae fable", de Barbara Makeda Levi que, aliás, eu recomendo bastante.
É verdade que ele estava começando a mudar o foco do reggae roots para um som mais global? Pergunto isso porque faixas como "Could You Be Loved?" e "Jungle Fever" lembram muito o afrobeat de Fela Kuti; "Redemption Song" era uma faixa folk acústica; "Bad Card", o primeiro ska em anos. 
Ele estava definitivamente olhando além. Há inclusive rumores de que ele pretendia demitir Carly (bateria) e Familyman (baixo) e colocar uma sessão rítmica mais contemporânea, capaz de tocar ritmos internacionais. Ele explorou todos os tipos de música ao longo de sua carreira e após sua visita ao Brasil, ele até gravou uma bossa nova que, infelizmente, nunca foi lançada. Não tenho dúvida de que ele exploraria o afrobeat de Fela Kuti bem como outros ritmos africanos e internacionais.
Tenho a impressão de que Bob Marley não gostava muito de conversar com jornalistas. A maioria de suas respostas era bastante genérica e ele nunca deixava que eles se aproximassem demais do lado mais complexo de sua personalidade. Você sentiu isso quando o entrevistou?
O ápice de empolgação que ele teve em nossas entrevistas foi quando Hank o desafiou a falar sobre sua afiliação ao controverso credo rasta das Doze Tribos de Israel. No mais, ele ouvia basicamente as mesmas perguntas milhares de vezes. Nos últimos anos de sua carreira - quando ele lutava contra o câncer que descobrira em 1977 - ele deixava que outras pessoas da banda, que falavam um inglês mais tradicional, como Tyrone Downie e Junior Marvin, respondessem por ele. Virtualmente, ele nunca ficava sozinho e sua exaustão era mais do que evidente quando eu viajei com ele. Mas ele era generoso demais com seu tempo, o que, do meu ponto de vista, contribuiu para que ele morresse cedo. Durante as 64 horas de entrevistas que fiz há 20 anos com Bunny Wailer para a agora abortada autobiografia dele, Bunny disse a mim e a Leroy Jodie Pierson que a única coisa negativa que ele se lembrava acerca de Bob era que ele "não conseguia dizer não para ninguém". Então, se você tivesse a paciência de esperar por ele, ele sempre acaba lhe dando o que você precisasse para uma matéria ou sessão de fotos.
Peter Tosh disse várias vezes que ele ensinou música a Bob Marley e que não tinha o reconhecimento que merecia por causa da sombra de Bob. Isso é verdade ou Bob Marley era simplesmente melhor como compositor e showman?
Sem dúvida, Bob era um showman mais carismático. Peter tinha uma inveja imensa de Bob, chegando ao ponto de dizer que Bob recebia mais atenção do que ele porque "era branco". Mesmo que ele tenha ensinado algumas batidas de guitarra, o verdadeiro professor de Bob - antes mesmo que ele conhecesse Peter - foi o Pai do Reggae, Joe Higgs. Joe recebia de um amigo mútuo chamado Errol para ensinar Bob em 1959. E ele ensinou todas as coisas necessárias para que Bob se tornasse o artista disciplinado que ele de fato virou: técnica com microfone, de palco, harmonia, composição, dança. Tudo.
E quanto a Bunny Wailer? No livro No Woman No Cry - Minha vida com Bob Marley Rita Marley disse que uma vez Bunny e Peter arrancaram fotos de Bob da parede porque não queriam ficar na presença de um homem morto. Isso foi só um reflexo da repulsa natural dos rastas pela morte ou havia um elemento pessoal aí?
Verdade no caso de Peter - ele fazia esse tipo de coisa na frente dos outros em várias ocasiões. Quando perguntei a ele se havia algo que ele quisesse que as pessoas soubessem sobre ele, alguns meses depois que Bob morreu, ele disse, de graça: "Dizem que sou o novo Rei do Reggae. Mas isso é mentira. Não há nada de novo". Esse tipo de coisa fez com que muitos fãs deixassem de gostar de Peter Tosh por achá-lo desnecessariamente negativo em relação a seu antigo parceiro.
Você fez uma pesquisa imensa a respeito dos primeiros anos dos Wailers. Qual foi a maior dificuldade em reunir este material?
Juntando o meu tempo de pesquisa ao de Leroy Jodie Pierson, foram necessários 70 anos para compilar nosso premiado esforço discográfico "Bob Marley and the Wailers: The Definitive Discography". Essa é a única discografia do trabalho de Bunny, Bob e Peter que atende a todas as exigências acadêmicas de um estudo discográfico. Foram necessárias milhares de horas de trabalho em diversos continentes, com a ajuda de centenas de colecionadores. Foram duas páginas de texto só para agradecer a todos. Não há qualquer material escrito acerca de seu trabalho de estúdio. Por isso, nós tivemos de confiar na memória das pessoas.
Em 2011, o Uprising completa 31 anos. Qual a importância deste álbum em particular, dentro da discografia de Bob Marley?
Bob era um profeta e sabia que não viveria muito. Ele disse a dois jovens amigos, em 1969, quando tinha 24 anos, que morreria aos 36 anos. Seu último disco era repleto de presságios e despedidas, da visão do trem do Sião ("Zion train") vindo em sua direção, a "Bad card", "We and dem" e "Real situation", sem mencionar a etérea "Redemption song". Mas a mensagem mais profunda está em "Work", música escrita pelo antigo amigo e percussionista "Seeco" Patterson. Ele compôs enquanto vinha a Kingston num mini-ônibus e contava as milhas: "Five miles to go, four miles to go, three miles to go..." (Cinco milhas para chegar, quatro milhas para chegar, três milhas para chegar). Quando ele chegou ao estúdio, cantou os versos para Bob que, imediatamente disse que gravaria a faixa. "Mas", disse a Seeco, "troque milhas por dias". "Work" fez parte do medley que encerrou seu último show (Pittsburgh, 23 de setembro de 1980), como se ele contasse os últimos dias de sua vida.
Por que é tão bom falar sobre Bob Marley?
Porque nunca houve um artista com a força, a pureza e o senso de propósito de Bob Marley, que foi capaz de alcançar tantas pessoas de diferentes credos, cores e nacionalidades. Ele deu voz a quem não tinha e é, sem dúvida, o "Artista do Século".

¹Entrevista publicada originalmente em 2 de fevereiro de 2010.

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